Ele nunca tinha se sentido tão só no mundo. Nunca. Nos quartos ao lado, seus pais dormiam, seus irmãos dormiam. E ele ficava acordado. Esperou a madrugada fechar, para poder terminar seu serviço. Do lado de fora da janela, vento. Um vento que gritava quando batia nas árvores velhas, desfolhadas. Do lado de dentro do garoto, confusão. Uma confusão que gritava, pedia pra sair, implorava. "Preciso me apressar", pensou.
Tirou a mala de cima do armário. Mala velha, puída, quase nunca usada. Abriu-a, passou um pano, tirou o pó. Preparou-a para abrigar suas poucas mudas de roupas. Duas calças. Cinco, seis camisetas. Cuecas. Meias. Alguns objetos (inúteis praticamente, vitais sentimentalmente). Sem perceber isso, como se fosse algo extremamente natural para aquele momento (e era), o garoto começou a chorar. Não um daqueles choros convulsivos, de gerar soluços e tosses, de lavar o rosto. Não, esse garoto não era disso. As lágrimas escorriam lentamente, uma por uma, em finas tiras, que se espalhavam verticalmente pelo rosto esguio e branco. Ele não notou que chorava nem quando pingos caíram por sobre suas roupas. Não notou, ou não quis notar (e isso é uma grande diferença).
Andou calmo, lento e concentrado, para fora do quarto. Quatro passos para a esquerda no corredor. Abre a porta. Entra no escritório. Procura dentro da quinta gaveta da estante que fica a direita da porta. Acha o álbum de fotos. E se nesse momento, ele chorasse de um jeito desesperado, soltando alguns sons guturais, qualquer pessoa conseguiria entender. Escolheu algumas fotos – não muitas, ele achou que a família também tinha direito a suas lembranças impressas – e pela primeira vez em meses, desde que teve aquela idéia, vacilou. Pensou, em poucos segundos, que tinha que largar essas fotos de volta no álbum, jogar as roupas da mala de volta pro armário, ir de volta pra cama. De volta pra vida de sempre. Mas foi um daqueles pensamentos vagos, que acontecem em alta velocidade. E que se dissipam mais rápido ainda. Estava decidido, era guardar as fotos na mala (em algum bolso mais escondido, nunca as arriscaria) e abrir a porta daquela casa pela última vez em anos. Pela última vez em sempre, quem sabe.
Não que não gostasse da família, longe disso. Mas sentia que jogava no lixo cada segundo da sua vida, vivendo daquele jeito. Acordando por acordar, ouvindo sempre as mesmas coisas sobre seu quarto, seu cabelo, suas notas. Não tendo nenhum motivo pra seguir em frente, só sobrevivendo ao passar dos dias, tinha tomado aquela decisão. Provavelmente não era algo do qual ele iria se orgulhar. Nem algo que as pessoas fossem entender. Mas no fim, não é sempre assim? Fazemos coisas que não gostamos, que podem (e provavelmente vão) ferir os outros, só porque alguma coisa diz que temos que fazer. Ele não sabia disso, só sabia que tinha que fazer logo. Já tinha deixado 17 anos escorrerem, não ia perdoar mais nenhum dia. Não tendo amigos fiéis, nem namorada, nem alguém com que ele se importasse, nada podia servir de freio. Só a família, talvez.
Quatro passos à direita no corredor. De volta ao quarto. Guardou as fotos, se olhou no espelho. Olheiras fundas, de um roxo mórbido. Não dormia direito desde que tinha planejado isso. Suspirou um suspirou fundo, quase um uivo, daqueles de filmes de faroeste, na cena que o mocinho, de poncho, dorme no deserto. Então, caminhou pra fora do quarto, seu deserto. Ganhou o corredor, ganhou a sala, de contornos muito estranhos na escuridão da noite. E quando a mão desceu de encontro a maçaneta, ele voltou. Não que tivesse desistido. Só tinha sentido uma vontade de olhar a família de novo. Voltou lentamente, voltou a chorar. Entrou nos quartos, e foi muito corajoso em seguir em frente depois disso. Beijou a testa da mãe. Sentiu o peito se rasgar.
Na sala, de novo. Na frente da porta. Porta aberta. Um sentimento muito estranho, algo novo, começou a correr nas veias. Aqueles segundos que ele levou pra descer as escadas foram os momentos mais ansiosos da sua existência. Cada pé que pisava fora dos degraus parecia levar séculos pra achar o próximo. Conseguiu chegar na calçada, a custo de alguns batimentos cardíacos histéricos. Já não chorava. Pelo menos não fisicamente.
Tirou o maço do bolso do jeans. Nunca tinha fumado antes, mas essa era um noite de revolução. Filtro na boca. Isqueiro na mão. Agora ele ia ser diferente, era o que queria. Caminhou em direção a esquina, sem olhar para trás. Se olhasse, provavelmente desistiria. Voltaria correndo pra dentro do apartamento que o abrigou por quase 11 anos. Preferia não arriscar, não olhar pro prédio de grades azuis, com sacadas na frente, pracinha ao lado. Caminhou em direção a esquina, ao ponto de táxi. Um único carro parado ali, motorista acordado (e provavelmente entediado), tomando um café e lendo alguma revista não identificável. Pornográfica, provavelmente.
-Pra onde vai guri? O garoto coça o queixo, quer parecer mais velho, quer parecer menos inseguro. -Ah, me leva na rodoviária... -Mas a essa hora?! Que ônibus tu quer pegar, guri? O garoto pensou que se fosse chamado de guri de novo, explodiria. –Nenhum em específico, a primeira coisa que aparecer. Não sabia porque tinha sido sincero. Era só um taxista, não interessava pra ele. –Sei... Também já pensei em fugir de casa. Mas bom, não tenho a ver com a tua vida, cada um na sua. Entra aí que eu faço o meu serviço.
O motor ligou, cortando o silêncio da rua escura e vazia. Era um dia quente de novembro, mas também era tarde demais pra qualquer atividade noturna naquela rua pacata, longe do centro. Qualquer atividade exceto uma fuga de casa. O garoto então, encostou a cabeça no vidro, vendo a paisagem ficar preguiçosamente, enquanto ele avançava. Pensou que a sua vida começava de verdade ali, dentro do táxi que cheirava a desodorizante, daqueles em formato de pinheiro, pendurados no retrovisor.. Que agora ele que tomava as próprias decisões. Tinha apenas uma vaga idéia de pra onde estava indo, e isso lhe agradava. Mas não sabia, que um dia no futuro, ele ia agradecer por falar português e poder pensar em "saudades" ... Com a cabeça encostada no vidro, o garoto fez forçar pra não chorar.
29 de agosto de 2009
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