24 de abril de 2011

And you can never quarantine your past


1. 
Um dia desses passei pela praça da minha infância, aquela na qual eu aprendi a jogar futebol e a andar de bicicleta e a subir em árvores (coisas que há muito não faço). Não foi intencional, estava andando por aquele bairro (que há muito não frequento), na direção de outro, e minhas pernas me levaram, desavisadamente, até aquele lugar, que ocupa quase uma quadra inteira, aberto, cheio de árvores e com o chão de areia fofa. Primeiro olhei com os olhos da minha memória e não com os do rosto, enxergando, dessa forma, a praça do meu passado, conseguindo até me ver, miúdo, embalado no balanço. Porém logo a imagem se desfez, num piscar, quando comecei a enxergar a praça do meu presente. Não que muito tenha mudado, é verdade, fora uma ou outra árvore abatida e as pinturas diferentes dos brinquedos. Mas me saltou aos olhos (os do rosto) a ausência de um dos brinquedos: o grande avião metálico que se erguia, alto, no meio dos outros. Aquele que, nos meus primeiros anos, eu temia, acuado pelo seu tamanho e altura e estranheza. Mas foi só acumular mais centímetros na fita métrica da porta do meu quarto, ganhar corpo e ousadia, para começar a desbravar os céus da minha imaginação, sentado no banco do piloto, vendo as outras crianças de cima, fuzilando nazistas e comunistas e os capangas do Coringa, ao lado da garota loira, que conheci por ali e que sempre me acompanhava nas aventuras aéreas. Agora o avião foi retirado, sabe-se lá porque (ou talvez saiba-se: desde a minha época ele acumulava ferrugem por todos os cantos, talvez tenha caído sozinho, ao sabor do próprio peso) e em seu lugar resta um pronunciado vácuo, um vazio no miolo da praça, denunciando o fim de algo. É provável que as crianças que agora correm por ali nem suspeitem, felizes em sua infância de sorrisos instantâneos despreocupados, mas ao perceber a falta do avião senti outra falta, correspondente, em mim; um buraco em meu peito empalhado que incomoda desde então.

2. 
Esse vazio me remete a outro, que vejo nesse momento: um daqueles vácuos de fim de festa, quando a massa humana, antes tão unida, começa a se dividir e separar, deixando visível, pela primeira vez na noite, o chão da boate, coberto de copos plásticos e bitucas, grudento (assim como o gosto do álcool que inunda minha boca e provoca minha sede). A fila da porta de saída é imensa, então, cansado, decido sentar em um canto, de ânimos arrefecidos, jogado na poltrona na penumbra, sob a luz branca piscante, atordoante. O ritmo da fila é lento, por isso tenho muito tempo para vegetar na poltrona, pensando na praça e nas sensações agridoces que esse pensamento me traz.

3. 
E, como se fosse um círculo, como se fosse a serpente que morde a própria cauda, o vazio dessa festa, por sua vez, me remete a outro, de outra festa, há um pouco mais de tempo. Na verdade, a memória dessa outra festa estava difusa, escanteada na cabeça até este momento. Foi uma festa estranha, organizada por alguns semi-conhecidos e dada num casarão abandonado: um sobrado em estilo espanhol, de pintura branca descascada e decomposição avançada, com suas janelas caídas e portas fora de esquadro. Uma festa moderna, cult, para celebrar nosso vigor em meio à decrepitude de uma casa-túmulo. Vagando, um pouco desorientado (o gosto do álcool, sempre ele) por todos os cômodos do lugar, fui assaltado por um soturno déjà-vu. Por trás da poeira, por entre o forro desfeito, por baixo dos móveis empenados, por através de tudo ali pulsava uma sensação de familiaridade brutal, que me acossou por toda festa e depois, na minha volta pra casa e em minha noite mal-dormida.

4. 
Na ocasião não pude perceber, mas agora vejo claramente da onde derivava essa familiaridade. Sentado na poltrona dessa festa, agora sei que a outra foi dada na casa que foi minha (de meus pais) em meus primeiros anos. O sobrado onde cresci e corri e aprendi a andar, onde morei até os meus cinco ou seis anos. A outra festa faz tempo e, dado o estado da casa naquela ocasião, posso especular que lá já não existe mais nada, as paredes devem ter quedado-se ao sabor do próprio peso, assim como o avião. Assim como eu, caído na poltrona e em mim mesmo, afundado nessas conclusões, me enfiando dentro do buraco de meu peito empalhado, engolindo a mim mesmo, enquanto minha namorada (que conheci há pouco, e que foi por quem eu troquei a anterior, que conhecia há muito, já que era a garota loira) me chama pra ir. Levanto e vou.

20 de janeiro de 2011

De Quando Eu Podia Vestir De Flores Teus Cabelos

Não é mesmo curioso, para não dizer estranho, que uma palavra jogada de qualquer modo sobre uma mesa, de almoço ou de bar, nos transporte no tempo como se esse não fosse nada e nos coloque numa situação já vivida e já aquietada, já presa numa gaiola de grades grossas que temos aqui dentro em algum lugar, não é mesmo curioso? Uma única palavra, que pode ser falada normalmente ou até mesmo sussurrada entre dentes, uma única palavra ou talvez um único nome, o que é ainda mais poderoso: o nome de alguém que passou e que por passar é passado, não estando mais presente no momento em que seu nome surge à tona de uma conversa banal. Ouvimos esse nome e o mastigamos em nossos ouvidos, talvez demorando ainda um pouco para sermos atingidos, talvez recebendo na hora os efeitos da flechada certeira. A conversa ao redor segue, e talvez já nem envolva mais aquele nome (ou palavra), mas nem prestamos atenção, pois já nos afundamos dentro de nós mesmos, indo até o fundo para catar as conchas das memórias. Os anos começam a correr e a girar ao nosso redor, as folhas arrancadas dos calendários pulam do chão onde foram atiradas e se colam novamente (é como rebobinar uma fita), quando nos damos conta já não se vê a mesa, de almoço ou de bar, nem as pessoas ao seu redor. Vemos aquilo que o nome (ou palavra) nos causou, o momento em que nos causou, talvez uma lembrança banal, mas significativa em cada colorido detalhe. Vemos aquele dia, tanto tempo antes do fim e mais tempo ainda antes de nos lembrarem seu nome, em que ela nos pediu para amarrar seus cabelos numa trança, e enfeitá-los com flores diversas, e nós fizemos, rindo, enquanto olhávamos, no espelho à sua frente, ela rindo também. Surgem de volta mais que as imagens, surgem os cheiros (o perfume dela borrifado pelo quarto), surgem as sensações (o cabelo dela liso e macio entre nossos dedos), surge toda uma vida que já não é mais, e que nós enterramos, conscientemente, não por ser ruim e sim por ser agradável demais. Mas, tão de repente quanto foi construído, esse castelo de memória se desfaz (as folhas do calendário de volta no chão) quando alguém na mesa, talvez a mesma pessoa que disse o nome (ou palavra), no chama e nos diz outra coisa qualquer, um comentário sobre o clima, talvez. Voltamos ao agora e é provável que não voltemos àquela cena enquanto não ouvirmos aquele nome de novo, atirado por sobre outra mesa. Não é mesmo curioso?