1.
Um dia desses passei pela
praça da minha infância, aquela na qual eu aprendi a jogar futebol e a andar de
bicicleta e a subir em árvores (coisas que há muito não faço). Não foi
intencional, estava andando por aquele bairro (que há muito não frequento), na
direção de outro, e minhas pernas me levaram, desavisadamente, até aquele
lugar, que ocupa quase uma quadra inteira, aberto, cheio de árvores e com o
chão de areia fofa. Primeiro olhei com os olhos da minha memória e não com os
do rosto, enxergando, dessa forma, a praça do meu passado, conseguindo até me
ver, miúdo, embalado no balanço. Porém logo a imagem se desfez, num
piscar, quando comecei a enxergar a praça do meu presente. Não que muito tenha
mudado, é verdade, fora uma ou outra árvore abatida e as pinturas diferentes
dos brinquedos. Mas me saltou aos olhos (os do rosto) a ausência de um dos
brinquedos: o grande avião metálico que se erguia, alto, no meio dos outros.
Aquele que, nos meus primeiros anos, eu temia, acuado pelo seu tamanho e altura
e estranheza. Mas foi só acumular mais centímetros na fita métrica da porta do
meu quarto, ganhar corpo e ousadia, para começar a desbravar os céus da minha
imaginação, sentado no banco do piloto, vendo as outras crianças de cima,
fuzilando nazistas e comunistas e os capangas do Coringa, ao lado da garota
loira, que conheci por ali e que sempre me acompanhava nas aventuras aéreas.
Agora o avião foi retirado, sabe-se lá porque (ou talvez saiba-se: desde a
minha época ele acumulava ferrugem por todos os cantos, talvez tenha caído
sozinho, ao sabor do próprio peso) e em seu lugar resta um pronunciado vácuo,
um vazio no miolo da praça, denunciando o fim de algo. É provável que as
crianças que agora correm por ali nem suspeitem, felizes em sua infância de
sorrisos instantâneos despreocupados, mas ao perceber a falta do avião senti
outra falta, correspondente, em mim; um buraco em meu peito empalhado que
incomoda desde então.
2.
Esse vazio me remete a outro, que vejo nesse momento:
um daqueles vácuos de fim de festa, quando a massa humana, antes tão unida,
começa a se dividir e separar, deixando visível, pela primeira vez na noite, o
chão da boate, coberto de copos plásticos e bitucas, grudento (assim como o
gosto do álcool que inunda minha boca e provoca minha sede). A fila da porta de
saída é imensa, então, cansado, decido sentar em um canto, de ânimos
arrefecidos, jogado na poltrona na penumbra, sob a luz branca piscante, atordoante.
O ritmo da fila é lento, por isso tenho muito tempo para vegetar na poltrona,
pensando na praça e nas sensações agridoces que esse pensamento me traz.
3.
E, como se fosse um círculo, como se fosse a serpente
que morde a própria cauda, o vazio dessa festa, por sua vez, me remete a outro,
de outra festa, há um pouco mais de tempo. Na verdade, a memória dessa outra
festa estava difusa, escanteada na cabeça até este momento. Foi uma festa
estranha, organizada por alguns semi-conhecidos e dada num casarão abandonado:
um sobrado em estilo espanhol, de pintura branca descascada e decomposição
avançada, com suas janelas caídas e portas fora de esquadro. Uma festa moderna,
cult, para celebrar nosso vigor em meio à decrepitude de uma casa-túmulo. Vagando,
um pouco desorientado (o gosto do álcool, sempre ele) por todos os cômodos do
lugar, fui assaltado por um soturno déjà-vu. Por trás da poeira, por entre o
forro desfeito, por baixo dos móveis empenados, por através de tudo ali pulsava
uma sensação de familiaridade brutal, que me acossou por toda festa e
depois, na minha volta pra casa e em minha noite mal-dormida.
4.
Na ocasião não pude perceber, mas agora vejo
claramente da onde derivava essa familiaridade. Sentado na poltrona dessa
festa, agora sei que a outra foi dada na casa que foi minha (de meus pais) em
meus primeiros anos. O sobrado onde cresci e corri e aprendi a andar, onde
morei até os meus cinco ou seis anos. A outra festa faz tempo e, dado o estado
da casa naquela ocasião, posso especular que lá já não existe mais nada, as
paredes devem ter quedado-se ao sabor do próprio peso, assim como o avião.
Assim como eu, caído na poltrona e em mim mesmo, afundado nessas conclusões, me
enfiando dentro do buraco de meu peito empalhado, engolindo a mim mesmo,
enquanto minha namorada (que conheci há pouco, e que foi por quem eu troquei a
anterior, que conhecia há muito, já que era a garota loira) me chama pra ir.
Levanto e vou.
Repito: adoro tuas partituras. :)
ResponderExcluirNo meu antigo parquinho agora há grades. Nos dois, no do condomínio da minha avó e no meu.
ResponderExcluirAcho que foi ali que me aprisionaram.
Ouroboros mítica.
ResponderExcluirGostei do seu blog.
Sou o taxista, lá do blog Taxitramas. Escreves bem, está no DNA.
ResponderExcluirHá braços!!