22 de novembro de 2010

Fragmento De Um Fim (De Noite)

Nós dançamos. A enormes caixas de som ressoam, no ritmo de alguma dessas músicas pop. Estamos suados e em silêncio, as luzes multicoloridas e piscantes nos envolvem, como uma névoa. Mal conseguimos manter nossos olhos abertos. Ela abaixa a cabeça, que balança ao sabor da música, e enlaça as mãos atrás da minha nuca. Sinto sua pele roçar contra a minha e me pergunto como deixamos as coisas morrerem desse jeito. Não sinto mais nada.

A música acaba e logo começa outra, que me parece exatamente igual. Acho engraçado não saber o nome de nada que tenha tocado nessa noite. Faz muito tempo que não ouço rádio, mesmo. Tem muitas coisas que não faço há muito tempo.

Digo qualquer coisa inaudível e vou me sentar na mesa, num canto escuro. Tomo um gole da cerveja choca. Então, enquanto acendo mais um cigarro, vejo, com o canto dos olhos, ela se aproximar. Se agacha e põe os lábios colados aos meus ouvidos.

- Então, o que a gente faz agora?

- Sei lá – respondo, segurando o cigarro entre os dentes. – A gente aproveita.

- Por que a gente muda tanto? – mais uma pergunta, naquele tom de voz único dela.

- Não saberia te dizer.

- É mesmo uma pena...

Ela se senta do meu lado e se cala, sutilmente. Sopro fumaça no ar e fico imaginando mil desenhos formados ali. Olho pro lado e a cabeça dela repousa, dormindo sobre meu ombro. Paz, então, em nós dois. Pena que só na superfície.

Adeus.

9 de novembro de 2010

Viagem À Lugar Algum



    No último momento desistiu de levar malas ou qualquer coisa assim, não faria sentido mesmo. Então, com nada mais e nada menos que a roupa do corpo e umas moedas tilintantes no bolso, entrou no carro. Tudo ali fervia, estava estacionado há horas no sol. Girou a chave e ouviu os engasgados roncos do motor. Não era um carro novo, mas nunca o tinha deixado na mão. Passou a mão no câmbio, como quem faz um carinho, e tirou o carro daquela ruazinha lateral onde o tinha deixado. Dali ele saiu lentamente, para aproveitar a visão da pequena praça ao lado, seus balanços de longas correntes, seu escorregador multicolorido, suas árvores grandes e caídas, jogando sombra para cima das crianças que brincavam com areia, a deixando escorrer, grosa, por entre os pequenos dedos, garimpeiros em busca de nada além de um pouco de diversão. Aquilo lhe tocou, de alguma forma que não podia calcular.
    Dobrou uma esquina, pouco metros à frente, e depois outra, mais adiante, já numa rua movimentada, entrou numa grande avenida, com seus coqueiros imenso se erguendo dos canteiros rasgando o céu da manhã, projetando suas folhas contra o azul esmaecido. O carro ia, amassando as grossas folhas do coqueiros que estavam caídas na rua, fazendo um som oco e alto. Passou pelas rótulas e viadutos, e em pouco tempo saiu da cidade, e ganhou a estrada, aberta, como uma rota infinita, se desnudando a sua frente. Colocou uma música, em volume alto, pra tocar, Bruce Springsteen, Born To Run, achou que seria adequado, mas desligou o som logo. Não era momento pra músicas mesmo. Preferia seguir apenas com os sons da sua cabeça, remoendo os sentimentos mais uma vez. A estrada estava surpreendentemente vazia, apenas uma ou outra carreta solitária, cortando o asfalto. E ele ia rápido, mas numa velocidade mansa, calma, numa velocidade sem pressa. O vento entrava no carro pelas janelas escancaradas e lhe baguçava todo o cabelo. Pisou mais no acelerador, pra deixar o vento mais forte.
    Uma hora depois, um pouco mais ou um pouco menos, chegou na cidade. Dobrou uma porção de ruas e parou diante do calçadão, diante da praia. Estacionou o carro ali mesmo e desceu, as pernas um pouco adormecidas. Sentada no chão, estava uma garotinha, com seus cinco anos, sentada ao lados dos quiosques fechados, e segurando uma grande balão vermelho. Não parecia perdida, mas estava sozinha. Exatamente como ele. Era loira e tinha imensos olhos castanhos, que o encaravam. Sorriu pra ela, e, ao passar perto perto, disse "bonito balão".
    Tirou os sapatos e as meias, os deixou ali mesmo e desceu as escadas que levavam a areia. O lugar estava deserto, era ele, o dono da praia, o senhor das terras abandonandas, livre para fazer o que quisesse. Foi andando lentamente, parando às vezes para enfiar os pés na areia morna. Parou diante do mar, sentindo na pele a maresia salgada e de um cheiro enjoativo. Dobrou os jeans até um pouco depois dos joelhos e foi entrando no mar, a espuma branca, gelada, envolvendo as pernas, o chamando pra dentro de si, pra dentro de algo muito maior. E ali na água, seguiu caminhando, foi indo.
    No calçadão, a garotinha, que olhava impassível, soltou o balão, que subiu aos céus, empurrado pelos ventos, foi até nunca mais.

20 de outubro de 2010

Apenas Mudanças

                                                           we're fated to pretend
                                                                                MGMT

    Ela muda o corte de cabelo, e o pinta de uma nova cor, mais clara, com algumas luzes. Vai ao shopping, compra roupas novas, arrisca com coisas que não usaria nunca, antes, e muda quase metade do guarda-roupa. Descobre uma cafeteria simpática, começa a frequentar toda semana, as vezes sozinha, as vezes não. Passa a usar alguns colares e pulseiras novas, com miçangas e pedrinhas coloridas, reminiscências de uma feira hippie. Para de fotografar, extermina as pretensões e se contenta com a câmera como hobbie. Faz mais uma nova melhor amiga de infância, troca confidências renovadas, estabelece novos laços de afeto.
    Ele faz uma nova tatuagem, maior que a anterior, mais colorida que a anterior. Troca alguma cadeiras da faculdade, arrisca uma novas, abandona tantas outras. Passa a fumar também quando sóbrio, ao contrário dos hábitos e conceitos anteriores. Apaga, do computador e do Ipod, uma porção de músicas, discos pra nunca mais de ouvir. Em compensação, conhece tantos outros, vira fã de bandas nunca ouvidas antes. Vai a novas festas, alguma nem tão legais assim, mas não consegue mais ficar em casa.
E quando os amigos lhes perguntam “tudo bem?”, sorriem com todos os dentes bem brancos, dizem que sim, que está tudo tranqüilo.
    Mentem.
    Mentimos.

14 de setembro de 2010

Não Mais

es tan corto el amor, y es tan largo el olvido
Pablo Neruda

    Então é assim? Depois de tudo, é só isso que resta? Como pode um amor daqueles, um amor grande daquele jeito, um amor devotado em todas as suas mínimas e ínfimas ações, um amor de braços largos, feitos pra abraçar apertado, como pode um amor daqueles ter sido reduzido a esse quase nada? E aí nos esgueiramos, rasgando os joelhos, sangrando a carne, rastejamos por entre os escombros e os minúsculos estilhaços que restaram depois da implosão, procurando loucamente por alguma migalha, por menor que seja. E elas são pequenas sim, mas nos interessam, nos alimentamos dela, com toda a fome do nosso espírito, mas isso não nos sacia, porque é quase nada, e estávamos acostumado com o quase tudo, o quase maior amor do mundo, o quase beijo mais longo do mundo, o quase olhar mais sincero do mundo. A história quase sem final. Quase.

7 de setembro de 2010

Reflexos de Algo Perdido Pelo Caminho

    Não sente nada agora porque talvez já tenha sofrido demais. Mas amor não é isso mesmo? Algo avassalador, cujo silêncio de sua retirada deixa um vácuo dolorido e uma porção de poemas amargos?
    Sentado diante dela, empilha cinzas e garrafas sobre a mesa de madeira do velho barzinho. Brinca com o porta-copo colorido, precisa manter as mãos ocupadas, assim como mantém os olhos fugidios, freneticamente vasculhando o ambiente, tudo para evitar o rosto dela.
    Ela fala e fala, não para um só segundo, ele não ouve nem a metade, não para de formular suas teorias, escuta apenas fragmentos do discurso, farpas afiadas naquela voz conhecida, “...acho que a gente fez o certo...”, “...mas eu não to saindo a sério com ele, não é nada demais...”, “...nunca quis te magoar...”, “...eu acho que o amor nunca acaba, sabe...”.
    Não acaba mesmo, ele pensa. Nunca se extingue em seu próprio fim, sempre segue em frente, se transforma, primeiro em pesar, depois em saudade, em alguns casos vira amizade, em outros ódio. Também há aqueles que acabam em indiferença. E os que acabam dor infinita, enorme e sufocante dor. Mas acabar, não. Afinal, não é sempre amor mesmo que mude?
    “É, eu concordo contigo”
    “Sobre o quê?”
    “Esse lance do amor nunca acabar”
    “Mas eu nem tava mais falando disso”
    “Bom, eu concordo do mesmo jeito”
    Já não tinham conversado sobre isso antes? Talvez. Já conversaram sobre muitas coisas, algumas tão loucas e tão íntimas que isso constituía uma forma de pacto, uma união através da devotada divisão de pensamentos. Só que esses eram outros tempos. Não havia mais conversas. Apenas enormes blocos de monólogos e enormes blocos de silêncio, intercalados.
    “Eu tava falando que...”
    “Eu vou embora”
    “Como?”
    “To cansado, quero dormir. Depois eu te ligo, desculpa.”
    Antes de ouvir qualquer outra coisa, levanta e sai. Tem idéia para um novo poema, vai pela rua escura repetindo mentalmente os versos para não esquecer de nenhuma palavra. Não se sente de todo mal. Tristeza tem fim, no final das contas. Se for assim, talvez o amor também, quem sabe? Pode estar errado, como em tantas outras vezes. Precisa reavaliar algumas idéias.
    Por enquanto segue pensando do mesmo jeito, até o próximo porre ou até a próxima mulher. O que vier antes. Ou que for mais marcante.

23 de agosto de 2010

União

    Cabeça dela no ombro dele. Cabeça dele nas nuvens. Os dois, com os corpos alvos, muito brancos, se misturando com as dunas claras, os dois unidos. Se imaginando num desses oásis tropicais, de tempo quente e vento revolto, eles enfiam os pés na areia fina, enfiam os pés até os calcanhares. Vistos pelas costas, são duas silhuetas escuras, como uma cena filmada em contraluz, dois vultos que se confundem em um só, recortados contra a paisagem do horizonte de mar azul escuro e o sol amarelo bem redondo, que, aos poucos, cai. O clima é de completo silêncio, a morte definitiva de qualquer som ou inquietação, mas isso não os incomoda de forma alguma. Como peças irmãs que vagam eterna e tristemente por um deserto de árida incompreensão, como duas dessas peças que acabam de encaixar uma com a outra, eles se entendem sem sons, as palavras seriam uma tosca formalidade. A mão delicada dela perdida no ar, buscando a mão forte dele, que não tarda a chegar. Eles se completam. Cada espaço vazio existente em um, preenchido pelos excessos do outro. Tudo aquilo tão aguardado, os momentos esperados, finalmente se fazendo verdade, expectativas cumpridas e superadas.
    E então, a paz. Não algo invasor, não algo visível, apenas e simplesmente a calma de quem sabe estar no lugar que deveria.

14 de julho de 2010

Prelúdio

    Sento na beirada da cama e acendo um cigarro enquanto ela, deitada, olha para mim. Não posso ver, mas sei que seus olhos estão fixos em mim, como a me atravessar. Ela quer falar alguma coisa, mas eu adio esse momento ao máximo. Suo, apesar de estar frio, apesar da janela aberta que deixa a chuva entrar e encharcar minha camisa no chão. Enfim, a olho, mas não diretamente, ainda, começo a olhar suas pernas, as coxas grossas, fortes, o corpo magro e bem definido, a carne muito branca, as cicatrizes auto-infligidas e as naturais, o cabelo longo e despenteado, a boca carnuda, sempre convidativa, e finalmente os olhos. Os olhos mais tristes que um homem já viu. Olhos estreitos, de uma cor desbotada, como se o acúmulo de lágrimas os tivesse deformado, e mesmo assim possuíam um brilho em seu interior, algo de escondido, no fundo. Eu sempre tive medo de olhar nos seus olhos, sempre parece que ao fazer isso me dá vontade de chorar. E me dá essa vontade agora, de novo. Ela começa a falar, não presto muita atenção, eu sei que ela está só enrolando, preparando o terreno com alguma conversa inocente, esperando o momento certo para dizer o que realmente quer. Ouço sem escutar e, vez em quando, dou uma resposta vaga. A situação me enerva, preciso me mexer, caminhar, mas não o faço, não quero que ela sinta meu nervosismo. Vou até a penteadeira, mexo em alguns frascos, ocupo minhas mãos. Me vejo no espelho. Barba por fazer, cabelo no rosto, olheiras arroxeadas, a inércia. Ela me diz pra olhar em seus olhos. Lá vamos nós, grand finale tão aguardado. Embora me doa, a encaro.
    Ela diz que me ama, mas eu não consigo responder. Não é que não queira, mas simplesmente não posso.

28 de maio de 2010

Ao Redor de Tudo Meu

    Como uma espécie de alucinação ela invade meu quarto naquele ponto da madrugada onde a luz parece que nunca vai nascer.
    Ela invade meus sonhos e se mistura aos elefantes de pernas longas e aos peixes que cospem tigres e aos relógios derretidos. Ela invade meus textos, me fazendo escrever sonetos confusos sobre amor e mulheres que já não pertencem a seus homens. Ela invade minhas memórias e acaba se infiltrando em épocas nas quais eu não a conhecia, aparece em lembranças onde não deveria estar, borra tudo, deixa meu passado cheio de desfoques.
    Mesmo em braços de outras, estando em corpos de outras, a presença dela me sufoca, é próxima demais, sinto suas mãos a me puxar. Por mais que eu tente, e eu tento, buscar afastá-la através de mulheres diferentes, não adianta, ela se mostra um espírito onipresente e cabelos loiros eu acabo por enxergar como pretos, peles escuras se tornam absolutamente pálidas e olhos castanhos, eu os vejo verdes, tudo para moldar quem quer que esteja comigo de forma a lembrar ela e juro que se as chamo pelo nome errado, não é minha culpa, é mais forte que qualquer consciência, é a minha voz criando livre arbítrio para seguir aos domínios dela.
    Não peço que voltes, não. Não que eu queria viver tudo de novo, que as mãos dela em meus cabelos façam faltam. Não que eu sinta algo ao ouvir sua música favorita.
    Não que eu tenha saudades.
    Lá é longe demais, lá onde ela está. Na verdade, nem sei mais onde é, só sei que é onde eu não chego pelos meus pés, como eu chegava antes. Notícias dela não me chegam desde muito tempo e da última conversa eu não iria conseguir lembrar sem muito esforço para isso.
    Por isso não sei explicar o porque dela estar presente em cada acorde que sai do meu violão ou o porque dela ser a protagonista de todos filmes que vejo.
    Não sei de muita coisa, mas acho que isso significa algo. Tenho certeza disso. E por agora, enquanto não descobrir o que é esse algo, só me resta saber viver essa ausência presente.

8 de abril de 2010

Como Qualquer Outra Noite

    Estamos todos completamente bêbados, sentados lado a lado em uma esquina velha do velho centro.
    Somos esperançosos, somos jovens, enchemos mesas de garrafas e falamos sobre tudo, não sabendo nada. O céu dá a entender que o Sol não demora a vir, mas não nos abalamos, cruzamos o que resta da noite em busca de qualquer coisa que se esconda no escuro.
    Temos o peito em brasa, nossas cicatrizes semi-abertas e a boca amarga de álcool e expecatativas, ansiosos por dias que destruam, desintegrem nossa rotina. Conversamos sobre o que foi e o que será, o que poderia ter sido se não fossemos novos demais. Porque ainda somos, embora nos apontem o dedo e nos acusem de adultos.
    Nós bebemos e sentamos no chão, falamos sem parar, rimos e gritamos pra satisfazer algo de selvagem, algo que chora dentro de nós. E se essas ruas sujas, cobertas de copos e latas, de cheiro acre, se essas ruas nos parecem acolhedoras, não é por puro desleixo. Voltamos pra casa sob um sol preguiçoso, ainda fraco, nos abraçando, tropeçando nos pés e cadarços, pensando longe.
    E nos decepcionamos e nos desanimamos e fazemos de tudo pra passar rápido essa sucessão de dias inúteis e inertes, onde tudo nos diz nada, onde rastejamos através da horas em busca de um acontecimento para nos agarrarmos, para nos fazer acordar sem essa vontade de dormir de novo. O sangue que faz o coração bater rápido e sem compasso, num ritmo próprio e quebrado, é o sangue que pinga de arranhões externos e internos.
    Nós nos apoiamos nos ombros uns dos outros, nós servimos pra isso. Nós somos amigos. Ainda bem.

26 de março de 2010

Outrora

    Comprei um vidro de perfume, igual aquele que usava quando ainda estávamos juntos. Com ele em punho, espalho o aroma forte, quase um cheiro de álcool, pelo ar do quarto. Adentro a nuvem de memória olfativa que se forma, e isso entra pelo nariz, entra pelos poros, vai fundo na cabeça, me lembra de outras paredes, outros lençóis, outras certezas.
    Se não penso na sua face sempre, a imagem vem fácil quando se quer lembrar, quando algo força-e a lembrar. Difícil seria esquecer o rosto de linhas angulosas, marcantes, e com os olhos bem fechados eu poderia pintar um grande quadro, com esse rosto emoldurado por dezenas de cores, imagens abstratas explodindo ao redor, faria isso com essas músicas tristes de sempre tocando ao fundo, talvez escrevendo um verso no retrato, um desses que nós recitávamos juntos.
    Enquanto isso, abro uma daquelas caixinhas com alguns souvenirs sentimentais e guardo o perfume para outra hora.

17 de fevereiro de 2010

Todo Carnaval Tem Seu Fim

    Amontoando garrafas de cerveja na mesa a sua frente, ele olhava para o meio do salão lotado e animado. Havaianos, cowgirls, homens das cavernas, bailarinas, lado a lado, dançando e cantando músicas tão velhas quanto seus avós, rindo e gritando, e sendo feliz pela simples razão de o ser. Mas o homem da mesa não está feliz, ele não é feliz a dias.
    A serpetina colorida, rosa e amarela, enrolada em seu rosto e cabelos chega a ser irônica. Ele a afasta, toma mais um gole. Na multidão de corpos ele divisa apenas duas pessoas, como se fossem as únicas peças coloridas de um quebra-cabeças cinza. Ele divisa apenas ela e o homem que a cerca, um cara que nunca viu antes. Ele é alto, vestido de caipira, tem as mãos ao redor da nuca dela, que não oferece resistência, pelo contrário, parece gostar. "Escroto, que fantasia rídicula, ele nem ao menos é bonito, ela pode conseguir alguém menos pior." pensa o homem da mesa. Já o homem da fantasia só pensa na mulher a sua frente, a mulher que agora beija. Mais um casal no salão que vê a formação de dezenas deles. O homem da mesa vira o seu copo de cerveja em pouco mais de um gole "Eu devia ter ficado em casa, maldita coincidência, mas também, devia imaginar que ela viria, idiota, idiota."
    "Idiota, porra, porque tu ta te incomodando? Vocês não são mais nada, nada, e tu que fez isso, ela é livre, tu também, levanta e faz algo, tenta viver." Ele terminou com ela faziam já algumas semanas, pouco mais de um mês. Talvez até dois. A situação era insustentável, mas ele pensou bastante antes de tomar a decisão, pensou se valia pena continuar, pensou se valia a pena terminar com algo que já tinha seus 3 anos. "Não, eu fiz certo, eu tinha que ter feito. Se não fosse eu, ela faria mais cedo ou mais tarde, tinha que acontecer logo antes que tudo se fudesse de vez." O fato é que a relação gastou-se como gastavam-se as vozes em brigas sem porque. Ela está agarrada no caipira, dança colada a seu corpo, tem as mãos em seu pescoço. Ainda o beija. "Porque diabos eu ainda olho?"
    Chegou a um ponto em que já não riam. Ele fazia as mesma piadas de sempre, as mesma tiradas irônicas, mas recebia apenas sorrisos frouxos. Iam aos mesmo lugares de sempre, mas agora os odiavam. Ele notou que não havia mais volta quando percebeu que conversa com ela por pura obrigação. Não era um prazer, os assuntos não os interessavam, não davam respostas longas. Trocavam palavras porque o que se espera de um casal de namorados jovens. Também se espera amor, e isso estava rareando cada vez mais... "Eu tenho que levantar, pegar alguém, sei lá, essa porra de cerveja não tá me fazendo bem." A bebida sempre o deixava melancólico. E pelo visto, deixava a ela mais solta, pois só faltava tirar a camisa do caipira em público. O sangue subia a cabeça do homem da mesa, enquanto tudo a sua frente se inundava em confetes. "Isso é ciúmes, vamos admitir. Mas não faz sentindo, não tá certo."
    Nesse momento, até mesmo um pouco antes, ele percebeu que sentia falta dela.
    Tudo bem que o fim tinha sido terrível, uma comédia de erros, um inferno para todos envolvidos. Mas não podia evitar de lembrar certas coisas com doçura. Pequenos momentos de afeto em meio as guerras e brigas e choros e mágoas pareciam ter valido mais do que qualquer coisa. Ele começou a pensar no começo do namoro, quando pensava sempre num modo diferente de dizer "oi" a ela, de quando tinha dezenas de planos para os finais de semana, de quando corriam de mãos dadas na chuva, de toda essa melosidade e afetação que o amor injeta nas rotinas. A bandinha que animava o ambiente agora cantava "Bandeira Branca a plenos pulmões. Não chegou a se arrepender de ter terminado com ela, apesar desse sentimento fazer de tudo pra abrir um espaço e fugir e tomar conta. Mas arrependimento não era com ele.
    Levantou da cadeira na qual estava sentado faziam horas, sacudiu o corpo e fechou a conta. Deu uma última olhada pra ela, como imaginava, ainda junto do caipira agora sem chapéu e com a maquiagem de barba completamente borrada. Se virou, e pegou o caminho pra fora do salão.
    "Fica bem guria. Até a próxima."

29 de janeiro de 2010

Do Silêncio


- Clarissa?
- Oi, oi, sou eu.
- Reconheceu minha voz?
- Claro.
- Ah, eu quis te ligar pra dizer que gostei de ontem.
- ...
- Sabe, aquilo já faz tempinho e...
- Um ano e meio.
- É, faz tempo. E por isso, e por achar que já nos perdoamos, podemos voltar ao normal.
- Normal?
- É, normal, tu sabe.
- Não sei mesmo.
- Ah, eu tava...
- Olha, a gente não tem nada faz mais de ano, o nosso normal virou sermos apenas conhecidos. Desculpa falar assim, mas é verdade.
- ...
- Não me leva a mal mesmo, a gente já foi bem unido, era tudo muito bonito e tudo mais. Mas era, foi, passou. Não vou te dizer que ontem não foi bom, mas eu nem sei porque fizemos aquilo.
- Tu não acha que dá pra tentarmos de novo?
- Sinceramente, não.
- Mas porque?
- Porque a gente fez muita merda. A gente se magoou demais. Eu agi errado contigo, tu agiu comigo. Foi horrível, até parece que tu não lembra.
- ...
- Vai não age assim, tu sabe que eu to falando a verdade.
- É, pode ser, mas tu disse que tava tudo perdoado...
- Perdoado sim, esquecido nunca. Cortes cicatrizam, mas não tem o costume de desaparecer. Tu é um dos caras mais legais que eu conheço, a gente pode ser amigo. Certo?
- ...
- ...
- Acho que eu ainda te amo Clarissa.
- ...

O fone fica mudo.
E a música que enche o ambiente é triste e machuca e toca tão alto quanto possível. Os violinos choram, e só não são tão miseráveis quanto o homem que afunda na poltrona.
O homem que não chora, porque acha estar seco. Mas ele só acha.

27 de janeiro de 2010

Inércia


            A chuva entra e encharca todas essas fotos que eu espalhei em cima da cama. Montei esse mosaico de momentos nossos achando que fosse ajudar, porque tu sabe, as pessoas só fotografam as horas felizes, então juntei as nossas pra tentar afastar da minha cabeça as horas tristes, as únicas que tem lugar na minha cabeça nos últimos dias. Começou como uma dessas melancolias noturnas tão comuns (pelo menos a mim), ouvindo algumas músicas tristes que não me deixem pensar que sou o único fodido dessa terra. E deus, preciso parar com essa autocomiseração, não ajuda em nada, mas ela vem e se instala, senta numa grande poltrona no meu peito, fica o tempo que quer. O motivo de me relacionar contigo, te namorar, é porque gosto de ti, porque em teoria tu me tornaria mais feliz e me daria tudo aquilo que todos querem. Mas então porque eu sinto alguma coisa rasgar aqui dentro? Porque eu sigo, deixo as coisas assim, se não me sinto nada bem, se fico sozinho, pensando em todos os piores ângulos? Talvez seja porque eu sei que se contigo eu sofro, sem ti o sofrimento viraria dor. E eu sou covarde. Pensei em ti ligar, tentar ouvir alguma coisa que me acalme. Mas tenho medo que tu fale algo que piore a situação, ou pior, que tu não diga nada além daquela conversa padrão, e das declarações mecânicas e decoradas.
            Preciso fazer algo pra sair disso, mas fica pra outro dia. Deixo as fotos se desfazerem na água. Hoje eu durmo no sofá.

21 de janeiro de 2010

Daquilo Que Ficou


            Já fomos um só. Mas o tempo passou e agora voltamos a ser dois, cada um com seu respectivo par.
            Terminou sem motivo, mas sem mágoa. Não brigamos, nós nunca brigamos, nós apenas vimos que tudo que um fazia acabava magoando o outro, e que continuar quando já não é mais possível sorrir é besteira, é errado.
Nós nos falamos, não como antes, claro, e nem frequentemente, mas com certa regularidade. Ela continua sendo um assunto que me interessa, por vezes sinto uma súbita vontade de ir até o telefone, saber como foi seu dia, o que fez, que pessoas conheceu. Interesse demais, talvez... Mas sabe, não existem segundas intenções, pelo menos não conscientes, sou feliz com quem eu vivo agora.
Eu gosto de, quando não há nada pra fazer (e isso é freqüente), lembrar de tudo que já foi, de coisas que já fiz em momentos que nunca acontecerão novamente, imortalizados em sua singularidade. Pequenos detalhes que na hora não me interessavam são os que mais brilham nas lembranças, e presentes bobos que recebi me trazem a sensação de que me foi dado o mundo. Não sinto falta, não lembro com melancolia, o tempo veio e deixou as memórias meio herméticas. Eu lembro e dou um pequeno sorriso, mas já não consigo me emocionar. Talvez só um pouco, muito pouco, lá no fundo.
Pouco... É uma palavra que tem estado em minha cabeça. Num outro desses dias tediosos pensei e vi que não há ninguém que passou por mim, viveu um dia na minha vida, que não tenha deixado um pouco de si mesmo no ambiente. Alguns deixaram mais que outros, claro. Alguns deixaram apenas o mínimo, quase não se nota. Outros deixaram tanto que parece que sempre tive aquilo, como se fosse uma herança de séculos atrás. Acho que ela foi uma dessas pessoas. Eu seria outra pessoa se não tivesse a conhecido. Mas também seria outra se não tivesse terminado. Melhor, pior? Não sei, mas tudo se ajeitou, e acho que gostei do resultado.
As coisas vão em frente, a gente se distancia, se aproxima de novo, e cada segundo algo muda em relação ao anterior, e saber disso ajuda a suportar as eventuais e comuns dores e dúvidas que nunca deixam de aparecer. Porque, ao contrário do que a gente gosta de espalhar em nossas poesias adolescentes, a vida é bonita.
Ou talvez até nem seja, mas vale a pena.

6 de janeiro de 2010

Carta Para Longe, Para Onde A Vista Não Alcança


Porto Alegre, 2 de Abril de 2007

            Oi amor, o que tu anda fazendo? Já fazem algumas semanas desde a última carta, eu fico apreensivo... Onde tu foi não há telefone, internet, só nos restou o papel. Tu foi pra longe, pra onde eu não posso te alcançar correndo, como fazia antes. A vida aqui segue a mesma, exceto uma coisa, que junto das chuvas e das saudades, é o motivo pelo qual te escrevo agora.
            É possível que tu não acredites. Eu mesmo não acreditaria se contassem, talvez nem mesmo se me mostrassem, é muito além da minha compreensão. Na verdade, essa coisa irreal, a tua ausência, essa primavera de flores grandes e coloridas, a saudade da tua voz, tudo anda contribuindo para que eu me sinta num sonho, do qual preciso desesperadamente acordar.
            Essa coisa começou faz pouco tempo, uns cinco dias, talvez mais. Não tenho certeza, ando perdido. A primeira vez me assustou de maneira que cheguei a achar que estava delirando. Mas logo depois aconteceu de novo. E de novo. E de novo. A freqüência dos acontecimentos venceu meu ceticismo pela exaustão. Aprendi a conviver com o absurdo, e agora toda a vez que uma delas vem, eu paro e ouço o que tem a me dizer. Não acredito em suas palavras, mas acredito que estou ouvindo-as.
            Sinto vontade de te perguntar se isso já lhe ocorreu. Não, provavelmente não. Certamente não, mas sinto vontade de perguntar mesmo assim. Sinto falta de saber coisas sobre a tua vida, mesmo as mais insignificantes. Acho que vou perguntar a uma delas quando tu volta. Mas elas não devem saber, nem tu sabe... Elas conhecem minhas dores e dúvidas e anseios e acho extremamente curioso me envolver tanto com essas borboletas.
            Elas costumam vir no fim da tarde, quando estou sentado no quintal, perto do jardim. Não é comum vir mais de uma por vez, mas isto já ocorreu. O normal (acho insano usar a palavra “normal” quando falo sobre isso) é vir apenas uma delas, de cor viva e quase fluorescente, voar em círculo perto da minha cabeça e acabar pousando logo acima da minha orelha. Então ouço uma voz reverbando dentro do meu ouvido, uma voz feminina, mas grave, que fala com um tom ao mesmo tempo urgente e sábio. Cada borboleta possui uma voz diferente, embora elas se assemelhem. Eu as deixo monologarem, sem interferir de qualquer modo. Me dão conselhos. É freqüente me dizerem que tu já não me ama... Como falei, não acredito em nada que dizem, mas não deixo de sentir o peito apertar. Não sei porque, afinal são insetos, não há motivos pra me falarem essas coisas, embora as falem diariamente.
            Guria vem logo que já não agüento acordar sem tem perspectivas de te ver. Diz-me, pro favor, quando tu volta, até gosto de surpresas, mas quero preparar algo pra tua chegada, e também acho que o sofrimento passa mais rápido (embora ainda lentamente) se tem data certa para acabar. Ah, ia me esquecendo... fiz uma música pra ti um dia desses. Eu gostei dela. As borboletas me falaram que ficou boa, mas que tu não vai querer ouvir. Eu espero que vá. Paro a carta por aqui, apesar de poder escrever livros pra ti, acho cartas longas enfadonhas. Te amo, amor, faria de tudo pra arrancar essa distância que se infiltrou entre nós.

                                                                    Ansiosamente
                                                                Daquele que te espera...

1 de janeiro de 2010

Desde Quando Eu Te Amo


                Tu me pergunta desde quando eu gosto de ti e eu não sei responder, não sei ao certo. Poderia dizer “Desde que te vi” para ser romântico, mas eu estaria mentindo. Poderia inventar alguma resposta inteligente e bonita, citar alguma fala de algum filme independente, desses que a gente gosta porque os personagens parecem conosco. Mas se fizesse isso, não seria sincero. E não gosto de mentir pra ti. Sei que não posso falar a verdade o tempo todo, ninguém pode, mas o faço sempre que possível.

                Desde que tu me perguntou isso, tenho essa dúvida: a partir de que momento tu se tornou peça-chave da minha vida? Mas sabe de uma coisa? Acho que não foi um único momento, uma situação em que a tua imagem batesse forte em mim e se tornasse inesquecível. Eu penso que foram várias delas, que, em sequência, te tornaram parte de mim. Lembro de todas claramente, como poderia esquecer?

                Teve um dia, quando ainda éramos apenas amigos, onde tu me chamou pra sair, passear pela Redenção, olhar as árvores, aproveitar o Sol, conversar, ver gente. Ver um ao outro. Caminhamos por mais de 5 horas, voltamos pra casa no escuro, eu fazendo algumas piadas ruins e tu gargalhando delas. Aquele dia foi importante, mais importante do que nos pareceu na hora.

                Houve também aquela vez que tu gravou um CD e meu de presente, a idéia era me mostrar tuas bandas favoritas, tuas músicas favoritas, os sons que tinham a capacidade de falar por ti. Cheguei em casa, coloquei ele no rádio e me senti entrando no teu universo. E foi uma bela surpresa. Belle & Sebastian, Beatles, Smiths, Oasis, Radiohead, Joy Division... Tudo que eu também amava e que falava ao meu peito tanto quanto aos meus ouvidos. Dê uma guitarra pra um britânico triste e ele vai te dar uma obra-prima. Nunca te disse isso, mas esse CD continua dentro do rádio desde aquele dia.

                A atenção que tu me dava, o jeito doce com o qual sorria me chamando pra ir no cinema, dar voltas no shopping, a voz decidida, mas meio envergonhada, com a qual tu disse que gostava de mim. E além de tudo isso, muitas outras coisas me levaram a gostar de ti, te tornar importante pra mim. Agora posso te dar uma resposta simples, do jeito que eu gostaria: não sei desde quando gosto de ti. Só sei que gosto. Só sei que te amo.